A circuncisão revisitada
Uma polêmica em que se misturam medicina, religião e tradição cultural está sendo travada no mundo todo em torno da circuncisão de bebês do sexo masculino. Praticada como ritual religioso por judeus e muçulmanos, a circuncisão, ou extirpação do prepúcio, é recomendada pela Sociedade Americana de Pediatria como medida de rotina, profilática, contra o câncer de pênis e cervical (as mulheres que têm relações sexuais com homens circuncidados sofrem menos desse câncer). Pesquisas feitas na África mostraram que os grupos circuncidados têm menos risco de contágio pelo vírus da Aids. Assim, embora o procedimento não tenha o aval da Sociedade Americana do Câncer, nos Estados Unidos metade da população adulta masculina é circuncidada (45 milhões de homens) e 1,5 milhão de meninos são submetidos à circuncisão todos os anos, em geral no segundo dia de vida e ainda no berçário da maternidade. A circuncisão de alguns bebês sem autorização da família provocou protestos e impulsionou um movimento anticircuncisão que ganhou adeptos entre os próprios judeus. Para os judeus, a circuncisão decorre de um pacto firmado entre Deus e Abrahão há 3.500 anos (em hebraico, esse pacto se chama Brit Milah) e é, mais do que qualquer outro ritual, a maior afirmação da identidade judaica. No Brit Milah, o recém-nascido recebe seu nome hebraico, mesmo que também tenha outro nome civil. Um homem que queira se converter ao judaísmo não pode fazê-lo sem submeter-se antes à circuncisão, que Abrahão fez em si mesmo e nos filhos Isaac e Ismael. Tanto entre os judeus quanto entre os muçulmanos (descendentes de Abrahão através de Ismael), a circuncisão acontece no oitavo dia após o nascimento. A marca é tão forte que a circuncisão de Jesus é o primeiro dia do ano no calendário no mundo ocidental. A circuncisão não faz mal, nem altera funções e reduz a infecção urinária em bebês O Brit Milah pode ser realizado numa sinagoga, em casa ou num local público – e o oficiante, chamado mohel, tem que ser judeu praticante. Os judeus ortodoxos têm regras estritas sobre o assunto, exigindo que o oficiante seja um religioso em tempo integral ou um rabino e que tanto o pai quanto a mãe do bebê sejam judeus. Raras são as situações – entre elas a hemofilia na família – em que o bebê é dispensado da circuncisão. Entre os conservadores e liberais, é comum que o oficiante seja um médico. Isso não retira o caráter religioso do procedimento, como explica o pediatra carioca Daniel Becker, do Instituto de Pediatria da UFRJ, que também atua como mohel no Rio: “A circuncisão é uma das tradições mais profundamente gravadas na alma judaica. Ela não faz mal nenhum nem altera funções, como alegam seus críticos, e apresenta vantagens como a redução da infecção urinária em bebês. Mas não são vantagens suficientes para que seja indicada se não houver um motivo religioso. Afinal, atualmente só 5% dos meninos têm problemas de fimose (aperto do prepúcio, que impossibilita descobrir a glande) e quando estes ocorrem podem ser operados na adolescência”. O urologista carioca Márcio Sister, que circuncidou há duas semanas o filho do cônsul do Egito no Rio, também atua como mohel e afirma que apesar do fato de a circuncisão ser um pacto de sangue não significa que deve haver dor. A transmissão do vírus da Aids é menor entre os circuncidados “A técnica é a tradicional, mas hoje se usa anestesia local para evitar a dor. No lugar da antiga faca, que devia ser amolada dos dois lados para que o oficiante não precisasse perder tempo, usamos bisturi e pinça. O preceito religioso indica que a criança deve sofrer o mínimo possível”. Sister ressalta a importância preventiva da circuncisão, que será um dos temas debatidos no congresso da Associação Americana de Urologia, no fim do mês. Ele informa que até 40% dos meninos não circuncidados têm algum problema ligado ao prepúcio, inclusive irritação da pele. Nos Estados Unidos, um estudo que comparou registros de nascimento de quase 500 mil meninos constatou que os não circuncidados sofriam mais infecções urinárias, no primeiro ano de vida, que os circuncidados. O clínico geral Roberto German acrescenta que a transmissão do vírus da Aids é menor entre os circuncidados porque o prepúcio tem dobras que aumentam o risco de armazenamento da secreção vaginal quando há contacto com a vagina da mulher contaminada. Essas dobras são eliminadas na circuncisão. Mas a verdade é que não há consenso em torno do assunto. Segundo o vice-presidente da comissão de diagnóstico e tratamento da Associação Americana do Câncer, Hugh Shingleton, apresentar a circuncisão como meio efetivo de prevenção do câncer de pênis e cervical é um equívoco sem base científica e “distrai o público da necessidade de evitar os principais fatores de risco para esses dois tipos de câncer, que são o cigarro e as relações sexuais sem proteção com múltiplos parceiros”. Conforme a Associação, o câncer de pênis é raro (um por 200 mil homens) e mata menos que as complicações decorrentes de circuncisões. O pênis e o trauma Para os religiosos, a grandeza da obediência a um preceito divino (no caso, imutável desde Abrahão) pode estar na própria obediência. Oficiante litúrgico na sinagoga da ARI (Associação Religiosa Israelita), em Botafogo, no Rio, o cantor Adi Hadary diz que não é preciso buscar explicações científicas para preceitos como a circuncisão. No Talmud, conta Hadary, já se fala do pênis como um órgão pequeno, “pendurado como uma verruga”, que ao mesmo tempo serve para gerar filhos e é o centro de todos os desejos. Quem controla a fome do pênis também tem a capacidade de controlar a vida moral. Por isso, quando um homem católico ou protestante, já circuncidado por motivos médicos, converte-se ao judaísmo para se casar com uma judia, passa pelo ritual em que uma picada de agulha retira uma gota de sangue do seu pênis. Isso indica que ele adere ao pacto firmado com Deus. “Quando o pai leva o filho para ser circuncidado, significa que concorda com o que seu próprio pai lhe transmitiu. Os preceitos devem ser aceitos de olhos fechados. Nisso reside a grandiosidade da religião”, diz Hadary. Para muitos judeus não religiosos, como o psicanalista brasileiro Moisés Tractenberg, a obediência a preceitos está fora de cogitação. A circuncisão, diz ele, provoca um trauma psíquico e sua única justificativa é a indicação médica, quando uma má formação congênita no prepúcio causa fechamento do canal de emissão de urina. A prática é dolorosa e permanece na memória inconsciente, aumentando a angústia da castração “Como médico que não renega a parcela judaica de sua identidade, afirmo que nos recém-nascidos a circuncisão representa uma nova situação traumática após o nascimento. Apesar da anestesia local, ela é dolorosa e permanece na memória inconsciente, aumentando a angústia da castração e podendo até levar à ejaculação precoce na andropausa”, diz Tractenberg, cujos três filhos não são circuncidados, embora tenham pai e mãe judeus. Tractenberg também discorda do argumento da higiene, afirmando que da mesma maneira que os filhos devem aprender com as mães a escovar os dentes e limpar o bumbum, o menino deve aprender a fazer a limpeza do pênis para não acumular esmegma (secreção serosa do prepúcio). Exigir a extirpação do prepúcio, declara, é tão absurdo quanto seria defender a extração precoce de dentes para evitar cáries no futuro.