A integração pelo esporte
Dez mil metros com barreiras. Nova prova de atletismo? Nada disso. É como João Batista Carvalho e Silva, presidente do Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB), descreve sua batalha diária para divulgar e promover no Brasil o esporte para deficientes. “Com uma barreira a cada metro”, acrescenta. O esporte adaptado para deficientes surgiu após a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de integrar e reabilitar os soldados vítimas de traumas físicos. Hoje, mais de cinco décadas depois, estamos às vésperas da 11a. Paraolimpíada, que será disputada em Sydney, de 18 a 29 de outubro. O início do que hoje são os Jogos Paraolímpicos ocorreu em 1948, quando o médico alemão Ludwig Gutmann aproveitou-se da repercussão dos Jogos Olímpicos de Londres para instituir os Jogos Desportivos de Stoke Mandeville. O objetivo de Gutmann quando criou o centro de treinamento de lesionados medulares no hospital de Stoke Mandeville, na Inglaterra, era adaptar os esportes ao tratamento de reabilitação física e emocional dos deficientes. Dois brasileiros são recordistas mundiais de natação Os Jogos Paraolímpicos – que recebem esse nome por serem disputados quase que paralelamente aos Jogos Olímpicos – são disputados em 18 modalidades. O Brasil estará em Sydney com 65 atletas, que competirão em nove modalidades: atletismo, basquete, ciclismo, esgrima, futebol, halterofilismo, judô, natação e tênis de mesa. A delegação mais expressiva é a da natação, com 17 atletas, dois deles recordistas mundiais. “Esperamos bons resultados, o que, aliás, já é uma tradição”, afirma João Batista. O esporte para deficientes é dividido em várias categorias, que variam entre o tipo e o grau de comprometimento do praticante. Disputam amputados, paralisados cerebrais, portadores de deficiência visual e deficientes mentais. Há ainda a categoria de cadeira de rodas e a chamada Les Autres, que engloba casos de esclerose múltipla, distrofias musculares, paralisias como hemiplegia ou hemiparesia, imobilidades de articulação, osteoporose, entre outros. Quatro mil atletas disputarão as Paraolimpíadas de Sydney, 15 vezes mais do que os 250 que estiveram na primeira edição dos evento, em 1960, em Roma. Para adquirir confiança, auto-estima e superar seus próprios limites O esporte é importantíssimo na vida do deficiente. Muitos sofreram acidentes, outros nasceram com amputações congênitas ou com deficiências mentais. A dificuldade e o preconceito são obstáculos a serem superados. O isolamento deve ser evitado e nada como a integração em um clube para deficientes e a prática de um esporte – que até pode ser coletivo, como basquete, futebol e vôlei – para devolver ao deficiente a autoconfiança e o sentimento de capacidade. Quem dá o exemplo é João Antônio Bentim, presidente do Clube dos Paraplégicos de São Paulo, entidade fundada em 1958. “Quando alguém sofre um acidente e tem um comprometimento medular, por exemplo, passa a fazer fisioterapia. Mas com o tempo, a condição do deficiente estaciona e não evolui. O esporte não tem limites, ele desafia. Além disso, melhora a auto-estima e prova ao atleta que ele é capaz de superar seus próprios limites”, explica João Antônio, que compete em provas de natação e conquistou cinco medalhas de bronze no campeonato interclubes, realizado em Bauru, São Paulo, em maio. Mais do que reabilitação, o esporte é canal de inserção social “A diferença entre um deficiente praticante de esportes e outro não-praticante salta aos olhos se colocarmos os dois lado a lado”, afirma João Batista, que além de presidente do CPB, é militante do esporte para deficientes desde 1981. Para ele, o mais importante da prática esportiva é ajudar o deficiente a encarar a vida e a sociedade. “O deficiente aprende com o sentimento de coletividade a encarar as vitórias e as derrotas”, explica. A psicóloga especializada em esportes Andréa Miranda explica que o esporte é indispensável para que o deficiente promova vivências como a luta pela superação dos limites e o conhecimento da própria potencialidade. “São experiências fundamentais para se viver em sociedade. O esporte é um elemento não só reabilitador como de inserção na sociedade”. Ela diz ainda que a superação no esporte para uma pessoa com todas as funções normais está relacionada a ir além dos limites de tempo, resistência muscular, etc. "Para um deficiente, o limite é mais concreto, é a falta de um membro ou alguma dificuldade motora”, explica. Deficientes ainda esbarram em dificuldades extras por falta de informação Segundo o Comitê Paraolímpico Brasileiro, dados da Organização Mundial de Saúde garantem que o Brasil possui 15 milhões de deficientes, mas apenas 1% deles pratica algum tipo de esporte. Muito pouco, claro. E a falta de informação é um dos principais responsáveis por essa pequena adesão. A mídia dá pouca divulgação para as competições e o Comitê chegou a ter que comprar espaço nas rádios, televisões e jornais durante a Paraolimpíada de Atlanta, em 1996. O calendário de competições nacionais é extenso, dividido por região e muito pouco se ouve ou lê a respeito. O Rio de Janeiro sediará o Campeonato Brasileiro Paradesportivo, que reunirá 750 atletas de todo o Brasil, entre os dias 29 de junho e 9 de julho próximos, no complexo esportivo do Maracanã. Será a última chance para que os atletas consigam índice para integrar a delegação brasileira em Sydney. Espera-se mais da sociedade e das autoridades: deficiente não é incapaz Independentemente da deficiência e do nível de gravidade dela, o mais importante é entender que o deficiente é capaz. Não só em atividades cotidianas, como no trabalho. A prática do esporte é a prova de que uma deformidade, a falta de um membro ou alguma paralisia não são suficientes para excluir ninguém. E o CPB promete continuar se esforçando pelo reconhecimento e divulgação do desporto para deficientes. “O grande desafio é quebrar as barreiras e estigmas para a conscientização da sociedade brasileira. O preconceito e a discriminação existem pela incompreensão decorrente da falta de informação”, lamenta João Batista. Exemplos de esforço e superação não faltam. Como o do iatista Lars Grael, que perdeu uma perna num acidente náutico, voltou a velejar e acompanhará a equipe de iatismo nas Olimpíadas de Sydney. Ou da técnica de ginástica Georgette Vidor, que após um acidente rodoviário passou a locomover-se numa cadeira de rodas e ainda continua a treinar as jovens ginastas do Flamengo. E há os menos famosos, que optam pelo esporte por vários motivos, seja para tentar melhorar a capacidade funcional de suas partes lesionadas, para elevar a tolerância à frustração ou até mesmo para descobrir a transição entre deficiência e aptidão.