A terapia contra o preconceito
Preconceito, segundo mestre Aurélio, é suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões. Além de ser também conceito ou opinião formados antecipadamente e sem qualquer ponderação. Ou seja, sem fundamento. Para quem sofre com ele, tem um lado ainda mais cruel. A auto-estima é sistematicamente corroída pela intolerância alheia. A psicóloga Maria Lúcia da Silva sabe bem como é o processo. Negra, ela vem trabalhando há tempos com as questões de raça e psicologia, coordenando o Amma, Psique e Negritude, em São Paulo. A Ong, integrada por duas psicólogas, em breve contará com mais quatro profissionais para ampliar o trabalho que vem sendo desenvolvido: tratar especificamente as questões psicológicas do racismo. Que incluem o rebaixamento da auto-estima e suas conseqüências: não se reconhecer com direitos e possibilidades, viver com um arraigado sentimento de inferioridade. As particularidades do racismo Maria Lúcia defende que o preconceito contra os negros tem características bastante particulares. “Num país em que raça e cor são desvalorizados, o racismo produz uma confusão interna, que dificulta o negro a assumir sua identidade”, afirma. Segundo a psicóloga, a isso se somam também as razões históricas de um passado de escravidão. “Visto como coisa, proibido de praticar sua religião e manter sua cultura, ele ainda teve as possibilidades de solidariedade inibidas na medida em que, no Brasil, escravos de diferentes origens foram obrigados a conviver numa mesma senzala. Hoje, é numa sociedade em que as informações são ambíguas e as expressões de positividade continuam não sendo negras que ele constrói seu psiquismo. E isso tem desdobramentos em todas as áreas de sua vida, como o afetivo e o profissional”, explica. Internalizando informações, imagens e mensagens negativas associados a sua cor, que cotidianamente o mostram como menos bonito, menos inteligente e menos preparado, ele passa a não querer ser aquilo que é: negro. O que tem uma explicação simples. “O indivíduo só se constitui como sujeito pelo olhar do outro. Se eu não sou visto ou sou visto de forma negativa, esta confusão interna é reforçada”, diz Maria Lúcia. O desejo de embranquecer Ela explica que diante de tudo isso, a conseqüência é a baixa de auto-estima e a dificuldade de gostar de si mesmo. O que torna ainda mais complicado enfrentar as relações de igual para igual, sejam pessoais, profissionais ou afetivas. “A questão da inferioridade, de uma forma ou de outra, está sempre posta. Não só porque há no negro o sentimento de menos-valia. Mas também porque, se há preconceito, o outro, o branco, também têm uma visão distorcida de si mesmo como alguém superior", salienta. Outra conseqüência cruel de tudo isso é a dificuldade de identificação com outros negros, com todos os desdobramentos que isso traz. “Leva a um desejo de embranquecimento”, diz. Embranquecimento que muitas vezes aparece no comportamento, na busca de um parceiro na vida amorosa. Enquanto o preconceito contra o pobre pode ser atenuado quando ele ascende — o que diminui os sinais de sua origem —, o negro tem como marca a própria cor. “Quanto mais ascende, mais o preconceito se acirra, deixando claro o desagrado com aqueles que estão fora do lugar que lhes é destinado socialmente”, acredita. Os relatos dos pacientes que chegam ao Amma trazem todos traços semelhantes, diferentes apenas nas histórias pessoais. Contam as dificuldades em vencer os estereótipos e a imagem distorcida que a sociedade tem dele e que ele também introjetou. Construindo um novo indivíduo “O que, em geral, se vê no dia-a-dia, diante das várias situações preconceituosas que surgem, são dois tipos de reação. Ora o medo do enfrentamento; ora a agressividade e a raiva. Mas também foi essa raiva latente que nos permitiu a sobrevivência”, pondera a psicóloga. Para reverter este quadro, o trabalho do Amma organiza as discussões em grupo, visando vários resgates: não apenas o emocional, mas também o histórico e cultural. “É preciso aprender a compreender tudo o que foi produzido por uma ideologia preconceituosa, mas extremamente eficiente. E reconstruir ao mesmo tempo a história pessoal e a história coletiva do negro como povo”, explica. Segundo Maria Lúcia, os resultados aparecem lentamente. “É como um despertamento. Mas uma coisa é se dar conta intelectualmente do preconceito e outra é ver como ele bate em você, em seus pensamentos, na sua auto-imagem, nos seus desejos”, diz. Exatamente por isso, é preciso mais do que apenas saber racionalmente tudo isso. Como em toda mudança emocional, será preciso abrir um link interno que possibilite entrar em contato com a própria dor, com a revolta e, a partir daí, reconstruir uma nova imagem. Embora se fale de resgate de auto-estima, para Maria Lúcia, trata-se de algo ainda mais profundo do ponto de vista psíquico. “É um trabalho mais longo a ser construído, implica resgatar o ser humano que existe em nós, em resgatar aquele indivíduo, que, por acaso, é negro”, resume.